Da Composição e Harmonia da Alma Humana

    Assim como a consonância do corpo consiste em uma medida apropriada e uma proporção dos membros, a consonância da mente também consiste de um temperamento apropriado e da proporção de suas virtudes e operações, que são concupiscíveis, irascíveis e racionais, todos em igual proporção. Em razão da concupiscência, a proporção tem diapasão; da raiva, diatessaron; e da irascível à concupiscência tem a proporção diapente. Assim, quando alma mais bem proporcionada se une ao corpo mais bem proporcionado, é evidente que tal pessoa é agraciada com um felicíssimo presente, uma vez que a alma se harmoniza com o corpo na disposição dos naturais*, harmonia esta que permanece oculta e, no entanto, é-nos insinuada pelos sábios.

    Mas, para nos estendermos à harmonia da alma, devemos investigá-la com os meios pelos quais ela nos é passada, ou seja, pelo corpos celestes e esferas; sabendo, portanto, quais são os poderes da alma aos quais os planetas respondem, nós poderemos, graças àquelas coisas de que já falamos, conhecer melhor, as harmonias entre elas. Pois a Lua rege os poderes de aumentar e de diminuir; a fantasia e as astúcia dependem de Mercúrio; a virtude concupiscível, de Vênus; as vitais do Sol; as irascíveis de Marte; as naturais, de Júpiter**; as receptivas, de Saturno***.

    Mas a vontade, como primum móbile e o guia de todos esses poderes, unindo-se ao intelecto superior, sempre tende para o bem. O intelectual, de fato, sempre mostra um caminho para a vontade, como uma vela clareando a vista; ela, entretanto, não move a si mesma, mas é a mestra de sua própria operação, daí a ser chamada de vontade livre (livre-arbítrio). E embora seja sempre propensa para o bem, como um objeto apropriado para ela mesma, às vezes é cega pelo erro, forçada pelo poder animal, acreditando ser o bem. Portanto, a vontade livre é definida como uma faculdade do intelecto, sendo o bem escolhido com a ajuda da graça e o mal, pela ausência desta. A graça, portanto, que os adivinhos chamam de caridade ou amor infundido, está presente na vontade como o primeiro motivador; na ausência da qual a consonância se converte em dissonância.

    De mais a mais, a alma responde à terra pelos sentidos, à água pela imaginação, ao ar pela razão, ao céu pelo intelecto*4, e a alma entra em harmonia com eles, conforme são temperados em um corpo mortal.

    Os antigos sábios, portanto, sabendo que as disposições harmoniosas de corpos e de almas são diversas, de acordo com a diferença das compleições dos homens, usavam e não em vão sons musicais e cantorias para confirmar a saúde do corpo, e restaurá-la após perdida, também para colocar a mente em ordem, até tornarem um homem apto para receber a harmonia celestial, e deixá-lo totalmente celestial. Além disso, não há nada mais eficaz para afastar os espíritos malignos que a harmonia musical (pois eles caíram da harmonia celestial, e não suportam nenhuma consonância verdadeira, pois lhes faz mal, e fogem dela), como Davi, que com sua harpa curou Saulo, que estava atormentado por um espírito mau. Assim, entre os antigos profetas e Pais, que conheciam esses mistérios harmônicos, os cantos e os sons musicais eram inseridos nos serviços sagrados.

 

* - qualidades humanas inatas.

** - as virtudes inerentes - habilidade artística, aptidão física, poder pessoal - dependem de Júpiter.

*** - as virtudes adquiridas e as habilidades de aprender dependem de Saturno.

*4 - A esfera moral da mente, que é superior à razão, a esfera lógica.

 

Livro: Três Livros de Filosofia Oculta - Autor:Henrique Cornélio Agrippa de Nettesheim - Compilação e Notas: Donald Tyson