A Raiva - O Incrível Hulk

Quando eu era adolescente, gostava muito de ler, e lia muito. Assim como hoje. Um dos livros que li foi “O médico e o monstro”, de Robert Lois Stevenson. O livro conta a história, bastante conhecida, do Dr. Jakyll, que fazia experiências e criou, acidentalmente, uma fórmula que o transformava em um monstro, que no caso era o Mr. Hyde, e que provocava destruição e morte por onde passava. Após um tempo, passado o efeito da poção, a personalidade do Dr. Jakyll voltava ao normal. Gostei muito do livro, como gostei de muitos outros. Há algum tempo atrás, meu filho estava lendo este mesmo livro. Mas desta vez a história despertou-me um interesse maior, já que hoje eu assimilo as histórias de maneira diferente. Lembrei também que este mesmo modelo foi adotado modernamente na figura de O Incrível Hulk. A diferença entre os dois é que, enquanto o Dr. Jakyll utiliza metaforicamente uma poção mágica para transformar-se, David Banner só precisa ficar com raiva. A sua raiva, crescendo sem controle em seu ser, o transforma literalmente em monstro, que destroi tudo ao ser redor. A semelhança entre as histórias é notável. E comparando com o mundo real, verificamos que, mais uma vez, a arte imita a vida. Quantos de nós já não se transformou em um monstro, em momentos de extremo desespero frente às dificuldades da vida. Mas os problemas da vida, assim como este sentimento inferior, pertencem ao nosso espírito, e está coerente com o nosso estado evolutivo.

Somos ainda tão simples e ignorantes, quanto no momento em que fomos criados. Progredimos bastante, é verdade, mas os traços irracionais da animalidade ainda pulsam em nosso corpo. Já foi dito, tantas vezes: o progresso não dá saltos; é uma conquista lenta, individual, mas progressiva e incessante.

Hoje ainda somos lobos com peles de cordeiros. Dia virá, e este dia não tardará, em que de fato seremos cordeiros com pele de cordeiros.

Mas o que é afinal a raiva? Como ela surge e se desenvolve? Antes de qualquer coisa, devemos lembrar que a raiva não surge de uma hora para outra. A raiva é um sentimento negativo que vai se infiltrando em nosso dia a dia, dominando nossos pensamentos, atrapalhando nosso trabalho, azedando nossos relacionamentos, não permitindo que amemos profundamente e em plenitude.

Diz o yoga que “pessoas evoluídas conservam a raiva por um minuto; as pessoas comuns a conservam por meia hora, e as pessoas ainda não evoluídas conservam por um dia e uma noite. Mas pessoas cheias de mágoas lembram-se de sua raiva até morrer”. E nós, que conhecemos a realidade da vida eterna, podemos completar dizendo que elas conservam a sua raiva ainda por muito mais tempo após a morte, gerando loucura e obsessão.

Naturalmente, muitos casos de raiva acumulada e sem controle podem ser resultado de processos obsessivos. Mas não levaremos esta questão em conta neste estudo, porque o problema da obsessão é muito complexo e carece de maior cuidado para que possamos fazer uma análise adequada.
O Espírito Hahnemann, no Evangelho Segundo o Espiritismo, diz que “o corpo não dá cólera àquele que não na tem, do mesmo modo que não dá os outros vícios”.

O monstro existe, e já está criado dentro de nós. Nós o alimentamos dia após dia, silenciosamente com toda a raiva que recolhemos em nossa rotina. A cada bronca que levamos do chefe, é um pratinho de comida que damos ao monstro; no caminho de casa, algum outro motorista nos dá uma “fechada” no trânsito e o monstro ganha mais pouco de comida; chegando em casa, já irritados, brigamos com a mulher, ou com o marido, e aí vai o jantar para o monstro. E é claro, que vamos assistir ao jornal, e o monstro se diverte com tanta sobremesa. E por aí vai. Dia após dia.

Chega então o momento em que uma bobagem qualquer dispara o gatilho, e vem a explosão. É a famosa gota d’água. Neste momento o monstro, tão carinhosamente alimentado, por tanto tempo, sai num ímpeto violento de sua casa, que por acaso somos nós, e começa a destruição. E lá se vão anos de dedicação à empresa, esperando por uma promoção ou um aumento; lá se vai também o casamento, o amor e o respeito dos filhos, o orgulho dos pais...

Às vezes, vai também a nossa vida, ou a vida de outros, que ousam cruzar nosso caminho...

Vemos nos noticiários quantas notícias de pessoas que se armam e causam verdadeiras tragédias, matando colegas de escola ou de trabalho, e depois se matando.

Há espíritos, encarnados e desencarnados, que gostam de sentir raiva, pois isto lhes dá prazer pela sensação de poder e sentimento de vingança que ela proporciona. Dizem que se sentem aliviados, por descarregarem o peso de suas costas. E depois, dizem, que são assim mesmo. “É o meu jeito!” E seguem, indiferentes aos outros, como se os outros tivessem obrigação de tolerar “o nosso jeito”.

E depois de tudo, quando caímos em nós mesmos, percebemos o estrago que foi feito. E somente nesta hora descobrimos que o maior prejudicado pela raiva somos nós mesmos. Bate o arrependimento, o remorso. Adianta pedir perdão para todo mundo? Adianta, é claro, mas mesmo que todos nos perdoem, já assumimos uma dívida que terá que ser resgatada no futuro. E o mais importante é perdoarmos a nós mesmos, tentando aprender o que saiu de errado, porque fizemos isso, e como podemos evitar que isso aconteça novamente.

Precisamos aprender a lidar com a raiva para que tenhamos controle sobre ela, para que o monstro que está dentro de nós possa ir aos poucos definhando, até transformar-se em um anjo que seremos um dia.

A melhor solução para estes momentos é afastar-se da situação, tomar um pouco de água, dar uma volta, até que a calma possa ser restaurada. E temos que ter a humildade de perceber que a culpa foi nossa, pois nada, absolutamente nada, justifica um momento de raiva, principalmente quando ocorre com as pessoas que amamos. Não adianta dizer que agimos assim pela conduta de outras pessoas ou situações. Isto é orgulho, achando que este tipo de sentimento não pertence a nós. Isto só aumenta a raiva.

Ao longo dos anos, a raiva não controlada gera depressão, a loucura e nos retira a alegria de viver.

Existem muitas maneiras de convivermos e controlarmos a raiva. No Bhagavad Gita, lemos que “Aquele que é capaz de suportar, aqui na terra, a agitação que resulta do desejo e da raiva, é disciplinado; ele é verdadeiramente um homem feliz”.

A prática regular da meditação nos ajuda a dissolver a raiva, nos forçando a olhar para dentro de nós, fazendo a ligação espiritual com Deus, que nos fortalece sempre.

A melhor maneira é cultivar os antídotos da raiva, ou seja, a tolerância e a paciência. Temos que aprender a gerar uma atitude de alegria interior, uma postura de contentamento e agradecimento pelas oportunidades que temos. Temos que aprender a resignação, que é diferente de conformação. Aprender a ter entusiasmo pela vida.

Outra coisa que podemos fazer é evitarmos os motivos que geram a raiva, trabalhando melhor com os nossos conflitos. Segundo Alberto Almeida, deve-se enfrentar o conflito com firmeza, com a caridade necessária. E nunca fugir deles, porque a fuga simplesmente abre espaço para o desenvolvimento do nosso monstro interior. A auto-análise e um diálogo fraterno com a outra parte podem abortar muitos processos dolorosos de raiva, cambiando um sentimento que é negativo em positivo. Em outras palavras: devolver com o bem ao mal que nos é dirigido; fazer nascer o Amor que tudo transforma e tudo pode. O exercício do Amor é um hábito que deve ser incorporado em nossa rotina de vida. Como os hippies da década de 70: “Façamos amor, e não a guerra!”. Mas Amor, e não sexo.

Na verdade, tudo isso já nos foi ensinado, mas relutamos em aprender. Preferimos ficar com a dor, porque achamos o remédio muito amargo.

Há dois mil anos, Jesus nos trouxe o Evangelho, a Boa Nova, nos ensinando a amar aos nossos inimigos, a respeitar o nosso próximo, a praticar a caridade de coração. No Sermão da Montanha, enquanto as multidões ouviam extasiadas as palavras doces, falando das bem-aventuranças, estava embutida a semente do remédio contra a raiva. Isto nos remete diretamente ao capítulo 9 do Evangelho Segundo o Espiritismo, que Kardec tão magnificamente nos codificou, explicando melhor o que Jesus disse: “Bem-aventurados os brandos e pacíficos”.

Jesus nos ensinava, desta maneira, que deveremos ter tranqüilidade para enfrentar os nossos problemas e as nossas dificuldades. Afinal, quem estagia em nosso planeta tem ainda muitos pontos a resolver. Como lembra Um Espírito Amigo:

“A vida é difícil, bem o sei. Compõem-se de mil nadas, que são outras tantas picadas de alfinetes, mas que acabam por ferir. Se, porém, atentarmos nos deveres que nos são impostos, nas consolações e compensações que, por outro lado, recebemos, havemos de reconhecer que são as bênçãos muito mais numerosas do que as dores. O fardo parece menos pesado, quando se olha para o alto, do que quando se curva para a terra a fronte”.(ESE, cap. nove).

Novamente, a paciência é lembrada para nos auxiliar. E a paciência tem que ser aplicada, primeiramente, em nós mesmos. Para lembrarmos que nossas dificuldades têm origem nos atos irracionais que praticamos quando queremos resolver tudo à força, sem darmos chance ao diálogo, à fraternidade.

O progresso espiritual somente será alcançado quando nos propusermos a nos melhorarmos, a vigiar nossos pensamentos, a corrigir nossas falhas. “... o homem não se conserva vicioso, senão porque se quer permanecer vicioso; de que aquele que queira corrigir-se sempre o pode”.

Lembrando novamente o Espírito Amigo: “Coragem amigos! Tendes no Cristo o vosso modelo. Mais sofreu ele do que qualquer um de vós e nada tinha de que se penitenciar, ao passo que vós tendes de expiar o vosso passado e de vos fortalecer para o futuro. Sede, pois, pacientes, sede cristãos. Esta palavra resume tudo”.

Acredito que com esta mensagem, não há mais nada para se comentar.
por Fernando Luiz Petrosky

Disponível em: (https://jghignone.blogspot.com.br/2009/05/raiva.html)