Os Vedas são vistos como as escrituras sagradas associadas à religião hindu, porém a natureza dos seus ensinamentos é totalmente diferente das outras escrituras religiosas popularmente conhecidas. De uma forma resumida para responder: “o que são os Vedas?”, devemos dizer que eles são a espinha dorsal de toda cultura hindu, também chamada de tradição védica. É a sua visão que permeia todos os braços de conhecimento e as práticas religiosas e espirituais da Índia, que devido a sua ancestralidade influenciaram muitas das outras culturas presentes hoje. Mas afinal o que são os Vedas?

Os Vedas através de seus versos, que são chamados de mantras, estão por detrás de muitas práticas religiosas e espirituais. As palavras em sânscrito, que é a língua originária dos Vedas, aparecem em vários termos no mundo espiritual. É dito, por exemplo, que a própria palavra “Jesus”, é derivada da palavra “Ishu” -”aquele que governa”, que aos poucos foi se transformando. O termo “OM” que está no início de diversos mantras, mesmo budistas ou tibetanos, tem sua origem nos Vedas. O termo karma, que usamos para falar do destino, também vem de lá, porém ele não significa algo exclusivamente negativo. E até mesmo coisas do dia dia como a cerveja Brahma, tem seu nome originário nos Vedas e ironicamente Brahma também é descrito associado ao número “um”.

Para entender o que são os Vedas, vamos analisá-los quanto sua origem, natureza e objetivo.

Quanto a suao que são os vedas natureza ou conteúdo, ao contrário do que muitos pensam, eles não são um veículo propagador de uma religião ou uma crença, seu propósito é ser um meio de conhecimento para assuntos que o ser humano não poderia descobrir sozinho. Eles vão mostrar a relação “causa efeito” entre ações e rituais dos mais diversos com o intuito de prover à humanidade maneiras de obter o que cada um quer. Eles não estabelecem uma doutrina, mandamentos, crenças ou formas de pensar. Por mais que as pessoas adotem valores e um estilo de vida através dessa tradição, isso é feito pelo interesse nos seus resultados, que em geral é uma vida mais saudável e com mais equilíbrio. Existem diversos tipos de rituais: ritual para ter um filho, para o sucesso de um empreendimento e até mesmo para ter um bom renascimento após o término dessa vida. No campo da “medicina” dá o conhecimento a respeito da energia do nosso corpo e sua interação com os alimentos e remédios, que é chamado de Ayurveda. Eles fazem também análise do impacto dos movimentos dos corpos celestes, levando em consideração o dia e local de nascimento da pessoa, o que chamamos de astrologia, mas na tradição védica é chamado de Jyotisam.

É um corpo de conhecimento disponível para humanidade cujos braços percorrem diversos campos: na medicina com o ayurveda, a dança com o natyashastra, rituais para satisfazer desejos com o tantra, a organização de uma casa com o vastushastra, as artes marciais com o kalaripayattu, os exercícios energéticos e para saúde com os yoga-ásanas, as meditações com as upasanas, o autoconhecimento com o vedanta, a poesia com o kavyam e ainda o canto, a comida, a astrologia, a administração e muitos outros assuntos.

Assim, quanto à natureza, os Vedas e a tradição que o envolve são um meio de conhecimento que permeia todos os campos da sociedade, revelando as conexões sutis presentes no universo.

Como sua natureza está conectada com a satisfação dos desejos humanos, o propósito dos Vedas surge a partir da visão sobre a realidade desses desejos. Os Vedas colocam que apesar de desejarmos de muitas maneiras diferentes, todos esses desejos tem como causa um sentimento de inadequação, cuja base é a ignorância do “eu”. Por não conhecermos nossa natureza, identificados com o corpo e a mente, nos julgamos pequenos e limitados, o que nos traz uma série de desejos na tentativa de nos tornarmos completos.

Quando analisamos bem a maneira como estamos tentando preencher esse “buraco”, percebemos que nossas ações não são realmente eficazes. Estamos tentando controlar as situações e pessoas e adquirir cada vez mais objetos para ficar livre e em paz, porém o controle das situações não é possível, as pessoas mudam, os objetos se vão e, mesmo se tudo ficasse perfeito, os nossos gostos e desejos também mudam.

Esse aparente enigma é decifrado pelos Vedas dizendo que o indivíduo já é completo e já tem tudo necessário para ser feliz. Ao contrário do nosso hábito de pensar, não falta nenhuma peça no quebra-cabeça, nem de fato as pessoas precisam mudar, o país não tem que ir para frente e nem é preciso acabar com as dívidas no banco para estarmos em paz.

Essa possibilidade apesar de parecer um desafio ou contraditória com a nossa experiência, tem uma realidade. Porque, mesmo com todos os problemas, de vez em quando nos encontramos em momentos felizes, rindo a toa, como se não houvesse amanhã. Não é verdade?!? Porque esses momentos existem, não podemos dizer que a felicidade não está disponível e simplesmente ignorar essa possibilidade. Essa é uma percepção construída aos poucos, por de trás de cada atividade a pessoa que está em contato com a tradição, vai descobrindo mais espaço interno, lidando melhor com as pessoas, com suas emoções e entrando no projeto de descobrir sua natureza livre e completa, o que é chamado de autoconhecimento.

Essa visão de levar o indivíduo a percorrer todos os caminhos da sua mente para decobrir sua natureza livre é o coração dos Vedas. Ao mesmo tempo que os meios para se adquirir os objetos são expostos, eles vêm acompanhados dessa visão, que os tornam mais preciosos, pois são capazes de preparar o indivíduo na sua jornada para o autoconhecimento. E uma vez que a pessoa desenvolve suficiente interesse por se conhecer, os Vedas também estão prontos para transmitir diretamente o conhecimento do “eu”. A seção dos Vedas responsável pela transmissão desse conhecimento é chamada de Vedanta, que literalmente significa a parte final dos Vedas.

O autoconhecimento que é fruto desse estudo, com auxílio de um professor de acordo com o que é prescrito nos próprios Vedas, é o ápice de todos os conhecimentos disponíveis nessa tradição, porque atua diretamente no problema fundamental de ser feliz . Os Vedas propõem que a idéia de alienação, injustiça e sofrimento que sentimos e lutamos contra, é apenas uma noção que pode ser corrigida usando uma ferramenta adequada. Essa é a proposta dos Vedas e da tradição Védica. Dentro da tradição esse estilo de vida que prepara a corpo, a mente e o indivíduo como um todo para essa jornada é  o que é chamado verdadeiramente de Yoga.

Assim quanto ao seu propósito os Vedas têm uma visão em mente, que é a preparação da pessoa para o autoconhecimento, mesmo que a pessoa esteja diretamente interessada em um objeto material, os Vedas darão os meios para obtê-lo e no processo farão a pessoa amadurecer na sua busca pela felicidade.

Contudo, pelo nosso hábito ocidental de dividir e categorizar é muito comum separar esses campos que compõe o conhecimento dos Vedas, mas quando fazemos isso perdemos a visão que está por detrás de todas essas atividades e que dão propósito para elas.

Basta observar como o Yoga (enquanto prática de posturas) se propaga pelo mundo para se entender o que acontece, quando se tira uma atividade da tradição ao qual ela pertence. O yoga, que tem como objetivo preparar a mente e o corpo para o autoconhecimento, aos olhos de muitos virou apenas mais um tipo de ginástica, assim como “pilates”. O que pode até ser verdade, uma boa opção enquanto exercício, mas isso é muito pouco diante do seu propósito maior. Sem a conexão com tradição védica, a prática de posturas de Yoga ou qualquer outra atividade não é errada, mas talvez esteja sendo subutilizada, em outras palavras incompleta. Se comprássemos um carro apenas para usar o porta-malas, não seria um desperdício? A dança, a culinária, os exercícios e a música todos esses campos na tradição foram desenhados para transformar a vida de uma pessoa, tirar o indivíduo da sua corrida tentando alcançar o primeiro lugar no mundo, e deixar essa pessoa disponível para si. A tradição é a beleza de todas essas atividades, sem ela tudo vira mais uma opção no nosso cardápio.

Qualquer uma dessas atividades da tradição se sustenta nos Vedas e são amarradas uma nas outras. Todas começam com um mantra e todo mantra começa com OM. Existirá sempre certa devoção envolvida, um estado meditativo e uma visão que permeia todas elas. Se escutarmos, por exemplo, qualquer musica clássica indiana ela vai falar da relação entre criador e criatura, vai ter um ritmo que nos conduz a processar emoções e a se entregar. Essas atividades em conjunto se tornam um “processo terapêutico divino”, porém quando separadas não se pode obter mais do que o resultado material direto envolvido.

A dissociação com a tradição védica também gera outros problemas, muitas linhas, muitos grupos e no final muita discussão. Quando não existe uma tradição, qualquer um pode diz o que quiser. Quem pode realmente estabelecer alguma verdade sobre um assunto, quando sua origem é desconhecida? Afinal de contas, todos tem o mesmo direito de expressar sua opinião. Contudo, quando vemos o Yoga ou qualquer uma dessas atividades como parte da tradição védica, a história é outra. Para ler os Vedas ou entrar em qualquer parte dessa tradição, primeiro precisamos de um professor que não tenha aprendido sozinho, depois precisamos aprender sânscrito, os mantras, e ainda tem muita meditação envolvida o que é fundamental em todo esse processo. E esse “pacote” não é algo que se obtém como fruto de uma viagem pela Índia, ou por conhecer um mestre incrível, ou uma benção divina do dia para noite e nem é algo que alguém possa inventar. A tradição é fruto de vidas de dedicação de vários mestres e discípulos, nós apenas mergulhamos nela.

Nessa jornada podemos encontrar vários mestres, porém antes de serem mestres todos eles são alunos. Os grandes mestres ou sábios são apenas pessoas, que tiveram algum papel importante, recebendo ou retransmitindo o que chegou até eles. Às vezes escutamos nomes como Vyasa (conhecido por ter sido o primeiro a escrever e documentar os Vedas) ou Shankara (conhecido por defender a visão dos Vedas que quase foi perdida na sua época), que como tiveram papéis marcantes achamos que eles são os autores desses ensinamentos, porém eles são apenas nomes de professores que pertencem a essa corrente, e que muitas vezes são usados para representar toda a tradição.

A tradição de ensinamento é como um rio, ela está passando pelas pessoas. Sua origem não é marcada pela opinião de um determinado professor ou grupo. É dito que os próprios Rshis, que os receberam em meditação, não clamam a autoria de nada, muito pelo contrário eles dizem: “e assim foi me dito…” O conhecimento dos Vedas não pertence a ninguém, ele é dado à humanidade. Assim quanto a sua origem dizemos que o autor é o próprio criador, que afinal de contas é também o autor de todas as leis karmicas e sutis que são o conteúdo dos Vedas.

Em oposição ao que estamos acostumados, os Vedas não são um livro, que foi escrito por alguém em uma determinada data que podemos traçar uma história e época. Os Vedas não possuem a descrição da história de uma pessoa com características especiais, ou descreve um determinado povo em particular, seus ensinamentos são atemporais. Eles têm sido transmitidos oralmente de mestre para discípulo e ainda hoje é assim. Mesmo que se tenham publicações, o uso dos mantras dependem de pessoas capacitadas para entoá-los corretamente e portanto eles mantém sua secularidade e a forma original. Dessa maneira não é possível determinar sua origem no tempo, devido a ausência de eventos históricos, ou um povo, ou uma cultura em particular associada a eles e como a tradição é oral não existe nem a possibildiade de avaliar manuscritos. E ainda assim, eles são os manuscritos mais antigos da humanidade hoje já datados de 2000 A.C

Os Vedas vêm atravessando os milênios junto com a humanidade. É dito que eles são revelados aos Rshis, sábios que recebem esses versos no início da criação ou quando se faz necessário, assim como qualquer outro conhecimento desse universo, como a matemática ou a física. A única diferença é que o recebimento desse conhecimento é produto de uma clareza mental advinda da prática de austeridades (disciplinas físicas e mentais) e não do desenvolvimento do processo intelectual como no caso da ciência. Porém é importante ressaltar que o recebimento dos Vedas e o entendimento do seu conteúdo são 2 processos distintos. Apesar de não ser viável uma pessoa fazer todas as disciplinas necessárias para recebê-los, podemos entender e usufruir do que já foi recebido pelos nossos antecessores, o que é algo natural e acontece também com a ciência.

Assim quanto a origem os Vedas vêm junto com a humanidade, seu conhecimento é atemporal e, portanto, o autor é o próprio Criador, como qualquer outro conhecimento de causa e efeito desse universo, embora não seja científico, pois, não é resultado de experimentos e da lógica.

Dessa forma na sua natureza os Vedas apresentam as relações sutis que não podem ser percebidas pelo ser humano, o seu propósito é conduzir à visão do indivíduo como completo, o autoconhecimento; e sua origem é atemporal, o autor é o próprio Criador, que os manifesta na mente dos sábios.

Apesar de existirem diversas linhas religiosas na Índia pegando carona na tradição, os Vedas não são uma religião em si, nem ao menos tem uma proposta religiosa, já que sua visão não é de indivíduo “pecador” que precisa ser salvo, ou que foi abandonado por Deus. Por isso não possuem uma instituição ou organização formal como uma Igreja. Essa tradição é carregada de pessoa para pessoa, sua característica é uma religiosidade livre, sem “religião”. Deus é livre de todas as formas e todas as formas são vistas como divinas. Não importa o nome, nem a língua, se a intenção e atitude forem adequadas, que oração que não será ouvida por Ele? Essa é a razão pela qual a própria tradição é repleta de histórias e diversas formas para adoração.

Essa visão de vida, de Deus e do indivíduo é o espírito da cultura hindu. Apesar da miséria e as dificuldades sociais naturais de um país de bilhões, as pessoas sorriem e te acolhem. Diferente do resto do planeta, onde o símbolo do líder social é uma pessoa bem vestida, no carro do ano, com um relógio de ouro e óculos escuros; na terra dos Vedas o símbolo social é o famoso “Mahatma Gandhi”, sem maquiagem, com roupas simples, com uma vida simples, com trabalho e feliz. Essa é a visão dos Vedas e da tradição védica, uma visão de contentamento em si mesmo, uma felicidade não dependente, onde o indivíduo se vê completo e, não, alienado do todo. Uma visão onde o “eu” é o próprio significado da palavra felicidade.